terça-feira, 2 de março de 2010

a casa das águas


a casa das águas



domingos de souza nogueira neto



Não era solo sagrado, terra profanada, e nem aquelas águas mirradas, eram lágrimas da velha escrava que vira seu filho morrer em tormentos.


Apenas uma bica de bambu, rudimentar, onde, antes do milagre dos encanamentos, lavadeiras esfregavam seus panos, e carregavam bilhas na cabeça. A terra esponjosa bebia aqueles poucos goles, onde se juntavam matinhos sem eira nem beira.


Assim, quando aterrei aquela nascente pobre, não ignorei a história, não cometi pecados e nem provoquei qualquer desequilíbrio no tece e destece das coisas da natureza.


Ali construiria a minha casa. Não seria um canto qualquer, pedra encaixada sobre pedra, frestas justas, como só Mestre Ferreira sabia assentar, pé direito alto, para mais de cinco metros, vigas de pedreado cru. O chão, a pedido, foi feito concreto grosso, ilustrado por cimento queimado com notas de marfim.


A mobília de alvenaria rústica, a iluminação com luminárias e acentos dicróicos procurava emprestar tonalidades diáfanas ao conjunto colonial, que podia ser totalmente aceso pelos janelões em todo o volteado.


O muro de arrimo aos fundos da morada, conjunto poderoso na escora do barranco, era também a parede dos fundos, inclinada em acento agudo, que para cada cômodo teria uma serventia.


Não houve mágica, tudo, aliás, pensando hoje, parece bastante previsível. Primeiro uma gota rolando tímida no encosto da sala, depois um fio e a poça no chão impermeável. Mestre Teixeira coçou a cabeça, ali estava o gotejo da bica, que sem terra para chupá-lo, corria tranqüilo na pedra nivelada.


A impermeabilização estava fora de questão, comprometeria a beleza da parede dos fundos, a pedra podia ser quebrada ao pé do lageado, para que a água pudesse mergulhar por seu caminho habitual, talvez um pequeno jardim.


Mas, enfim, optamos por fazer ao redor dos comodos uma larga canaleta impermeável, que conduziria a água caprichosa pelos entornos do interior da casa com desague final no ralo de malhas finas do banheiro.


O problema dos mosquitos seria resolvido por uns poucos peixes, que certamente aprovariam a beleza e liberdade do ambiente.


Minha esposa (uma linda huri libanesa de nome Hálima), começou a transformação. Apareceu um dia com orquídeas, compradas em uma exposição, e colocou-as com preguinhos e arames na beira do fio de água que escorria da parede.


As orquídeas se espalharam, ganharam o pedrume, se juntaram a outras, que vinham de toda a parte pela mão de amigos, teceram no reclive um delicado entremeado de flores, pedra e folhas. Todos os dias, em uma das frestas de pedras duras, um meristema despontava curioso.


Meu filho, o Príncipe Pedro Daher de Casad'águas, não podia ver peixes de aquário e plantinhas aquáticas, sem libertá-los no remanso criado, que ganhava em colorido e pluralidade a cada novo dia.

Guppies, Neons, Espadinhas, Platis, Molinésias, Tricogasters, Colisas, Acarás, Paulistinhas, Barbos, Japoneses, Tetras e Mato-Grossos, com seus véus e suas liras, variedades intermináveis de espécies e matizes, juntavam-se a toda uma fauna de molúsculos e crustáceos de água doce, "sei lá de onde", que eventualmente escondiam-se nas folhagens das orquídeas a beira do riacho.


Orquídeas e plantas d'água se beijam hoje em toque delicado, e me deixam perdido, porque tudo começou onde não havia mágica, história, natureza, e então, de uma lágrima, tudo se fez.


Ah, e tem o Ian - nosso bebê - gritando encantado.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

livre


livre


domingos de souza nogueira neto



nua no solo gotejando sangue,
coberta por galhos e por brisa,
os cabelos atados em treliças,
o salgado dos seios qual o mangue.


o charme da morte no entorno,
nada tão belo como já não ter vida,
o voejar da alma livre de estorvo,
pérolas rubras na rosa entreabrida.


olhos azuis de costas para as estrelas,
lábios abismos pálidos entre sustos,
no solo a beleza (bruços feito em telas).


e o estilete equilibrado em meus dedos,
purpureo ao refletir o alvor da lua,
celebrava a queda nua de seus medos.

melhor perder-te que deixar-te tua.



terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

paradoxo


paradoxo



domingos de souza nogueira neto



Minhas caminhadas são perderes, ando longe de onde vou, quase nada vejo, tomo e retomo lugares antes de chegar. Naquela tarde o tumulto me fez voltar a mim.

Em pé, o mendigo, suarento, barbudo, cabeludo, ensebado, exalava o cheiro quase insuportável de suor, feses, urina e comida apodrecida. Se debatia.


Em torno dele o policial, desferia chutes e murros, e um civil, destes comuns espancava solidariamente o pobre. Tentavam, sem sucesso, derrubá-lo.


No chão, sentada rente a parede, uma criança linda, loira de olhos azuis e vestida a molde dos anjos, chorava inconsolável.


Eu mesmo, de cabelos amarrados em rabo, terno roto e com outro Eu (de Augusto dos Anjos) na mão, não contribuia para a beleza do cenário.


Parei transido de medo, não se enganem, temia ser covarde ainda desta vez, mas decidi tentar. - Secretaria de Direitos Humanos! gritei. - Parem com isto!

A mentira sempre me acompanha quando estou com medo, e a idéia dos direitos humanos veio assim, atoa.


Olhando firme para o policial fui categórico: - Largue este homem ou o prenda, mas voce não pode bater nele!


Quase que em slow motion a cena se desfez. O mendigo foi embora, esbravejando para as dores, estas e aquelas, que não pude ver.


O policial, livre do mau cheiro e da perspectiva de encarceirar a sub humanidade dos lumpens, junto a maldade insurgente (mas preservada em sua estética), procurava entre os lojistas pia com água e sabão.


O paisano, assistente de algóz, aproximou-se da criança e tomou-a ao colo, consolando-a com doçura. Depois, olhando-me nos olhos, apenas disse: - aquela coisa imunda chutou o meu neném!


O paradoxo me deixou confuso, e meu sentimento de herói me abandonou sózinho, com "Eu" nas mãos, apenas fui embora.


A dor do pai, do mendigo e do poeta augusto. O alívio do policial e meu momento incerto. As lágrimas da criança que nada entendia. O que fizemos do colo do mundo?

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

neverend - domingos de souza nogueira neto


neverend

domingos de souza nogueira neto

Não sei como iniciou a queda. Lembro-me apenas das paredes acelerando ao lado, vertiginosas. Distinguia as cores no início. Imagens, sombras, saliências, tufos? Verdes e castanhos acelerando, zumbidos...

Tudo se misturava depois. As cores em cinza, imagens em planos, paredes em lados e zunidos em ventania.

Preparei-me para o impacto. O estalido oco de ossos partidos. Para a dor de segundos, talvez menos. E depois?

Só o contínuo. As luzes se foram, o vento parecia riscos rápidos de gilete, o breu, o cilindro negro ao redor, e a angustia da queda no escuro dos pesadelos de criança. Talvez tivesse enlouquecido e rostos me olhassem atônitos.

No fim, nada, e nem fim. Já não havia vento, o arredor cintilava em branco, já não sentia a queda, apenas um ponto que então se apagou.

Então, o vazio, ou pleno, talvez, e como ínfimo yo-yo cósmico senti a hora de voltar às sombras, de acelerar de volta, rumo ao ponto, sem mais saber...

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Elogio à Morte




elogio à morte


domingos de souza nogueira neto


Destas crenças humanas, das quais me rio às vezes, a morte é talvez a mais fantástica. Insistimos na idéia do início, do fim e do meio, como se nossa própria experiência conduzisse a isto, de forma inexorável, medida por régua escolar.

Para atenuar nossos medos, criamos deuses - nós criadores de deuses - que preenchem os espaços de nossa incopreensão. Ícones do pânico diante das trevas.

Os animais, nossos ascendentes verdadeiros, nos deixaram esta herança, a paralização trêmula diante do abismo que não nos atrevemos a saltar.

A morte seria então o fim - se não houvessem os deuses - e é de se temer o desfecho - ninguém, de nós impíos, mostra terror frente a juízes implacáveis da coragem, da pureza, da nobreza, do amor incondicional. Mas, o nada, é terrível... não entendo.

Sendo sincero, o temor a deus é algo que me assusta, muito, porque sou pouco, pequeno demais diante desta idéia. Já o conceito do nada, do fim, é, mesmo, confortável, o descanso, enfim, o fim das culpas.

Mas, confesso, que minha crença em deus caminha, pari passu, com minha crença no fim.

A impressão que tenho (aterrorizadora, de fato), é de que a Lei de Lavoisier, radicalizada, proporciona, não só para massa, ou energia, mas para a própria cultura, história e vivência (individual inclusive), um permanente e constante estado de transformação, sem tréguas ou leis, para a infinita incerteza da existência.

Nesta linha, não haverá descanso, perdão ou alívio presumíveis, mas apenas caminhos sem fim. Eu gostaria de não acreditar nisso, estou cansado.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Brumas de Paris


Brumas de Paris

domingos de souza nogueira neto


Ali estava eu, solitário em Paris. O "Café de Flore", meu favorito, estava vazio àquela hora e a vista de Saint Germain, da varanda, me fazia alheio, naquelas brumas de inverno.

Foi quando chegou, linda, de certa forma que atemorizava, a gargantilha com pontas, piercings na boca, sombrancelhas, lábios e nariz. Os cabelos, pretos, curtos, pontilhados, realçavam o negrume da maquiagem até a boca agressiva. Gótica sem dúvida. A tatuagem da serpente - seria um dragão? - mergulhava nos seios, desafiando minha imaginação a segui-la em viagem.

A semescuridão da hora era perfeita para ela, pronta para saltar sobre algo maior que eu - esquecido. O vestido o negro bem talhado, de decote amplo e a saia curta, realçavam a perfeição do corpo onde o artista desenhara.

Parou, montou a cigarrilha sobre a piteira longa, e sorveu um trago, que expeliu em baforada compondo com a neblina do chão a fugáz imagem de um cisne. Depois olhou além, como se esperasse pela noite ainda longe.

É certo que meu olhar perdido não a incomodava, brasileiro do interior, acostumado a personagens apenas literárias, tão cativo daquela presença que poderia me destruir com um único franzir inquieto de sombrancelhas.

Foi quando apareceu nas nuvens outra personagem, loira, de cabelos fartos que desabavam em cachos claros, olhos azuis e sorriso débil, quase flutuando. Vestido azul, até os pés, calçados com saltinhos que certamente serviriam a Cinderela. E - não sei se podem comprender - uma leve brisa parecia soprar apenas para mover aquele quadro.

Certamente as crianças a adorariam, deitariam no seu colo com gemidos curtos, a girariam cantando cantigas de roda em pradarias cobertas por florinhas brancas e pediriam que lesse as histórias das quais minha infância eram repletas. Poderia ser fada, princesa e a pele era alva a ponto de escurecer a névoa da manhã.

Dirigiu-se à primeira. Parou na verdade, tão perto, que compartilhavam a neblina respirada, as brumas do dia e o bafejo da cigarriha, que agora pendia ao longo do corpo, e, após cruzarem um olhar quase eterno, tomaram-se nos braços e se beijaram, sorvendo-se, lentas, tese e antitese, nas brumas de Paris...

FOTO: Cafe De Flore
by Jeanloup Sieff em http://www.allposters.com/

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

miríades e sombras


miríades e sombras

domingos de souza nogueira neto

Entre os cobertores espremia meus olhos, a noite me ensinou a estar só. Havia sempre o que ser temido. As sombras escuras que andavam enfileiradas e transformavam minha alma em gelo. Ao longe o noturno.

Apertando as pálpebras se espalhavam os cintilos, as vezes breves e sozinhos, as vezes em filas alegres, miríades, das quais só vim a saber com o passar de auroras.

Eram assim as minhas noites. Nada sabia dos meus pais, que estavam vivos, dormia na cama dos meus avós.

Conhecia do mêdo, da incerteza, das ausências traduzidas em sombra, e das criaturas da noite, que ocupavam o espaço entre os miúdos da infância e tudo o mais que haveria de vir.

Entre uma e outra, minipsicodélicas brincadeiras de luz, alheias aos meus terrores e a onipresença das sombras, existiam, de fato, quem havia de dizer, diamonds que Lucy haveria de ver in the sky.

Não via o universo de galáxias e buracos negros, nem trevas salpicadas, meu jovem rosto pouco alcançava pelo buraco do cobertor.

Havia apenas a criança, assombrada pelo desconhecimento, pontuado por pequenas luzes, sobre o qual nada podia, esperando pela hora de acordar.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

canalha...


canalha...
(*) domingos de souza nogueira neto

***
Não se limitou a pensar isto, nem a falar ... ali estava, escrito e assinado: - É um canalha!
A perplexidade dos tolos me tomou por completo. Como assim um canalha? O havia acolhido, insistido em uma promoção improvável, nunca, em nenhum momento, havia dirigido a seu respeito uma palavra de desafeto, ou desconsideração, mas ali estava o texto. - canalha!
Não acredito em santos, nem em deuses, me perdoe quem não é assim, pensei então em Chico, Caetano, Jobim, Elis e Betânia, como lidar com isso? A pessoa que ajudara, sem querer nada em troca, pelo prazer de o ver feliz, escrevera canalha, sobre este velho, que não conseguia atinar sobre qualquer razão para ser carimbado desta forma. Os poetas haveriam de ter algo a dizer.
Todos sabiam (mas não eu), deste estigma, porque, por alguma razão misteriosa, ele me marcara e informara a todos.
Estava de licença, tirando horas havidas na casa, mas voltaria, sorriria para mim como uma fuinha hipócrita, e, em seu sorriso dissimulado eu leria: canalha!
Um soco, rápido e certeiro, tiraria aquele sorriso depravado (muitos e melhores poetas socaram por menos), mas ele cairia no chão rolando, como uma lesma gorda e choraria dizendo: - o canalha me bateu!
Deixarei então, perdoem-me os poetas, o vômito nos lábios da criatura sórdida, para que siga em frente, cuspindo sobre os que o ajudaram, não me cabe esquecer o que disse, nem quem era, mas tampouco posso me esquecer de quem sou, e não isto.
Este visco será então a sua marca, esta baba, os que olharem para os seus passos não verão pegadas, verão ranço. E aqueles que lhe estenderam a mão generosa, viverão com o asco do toque em desaviso.
***

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Dia de Morrer


Dia de Morrer

Domingos de Souza Nogueira Neto


Não me recordo do silvo, do som sibilo, que em minhas memórias futuras estava guardado. As três picadas, o calor bem pontuado, a fraqueza nos joelhos, que me fez cair, depois o frio, e o sono...
Espantei preocupações com a mulher, os filhos, crianças ainda... Meu futuro se dissociava do deles, melhor esquecer... Procurei não pensar em Deus, nada do depois me parecia familiar.
Naquele breve crepúsculo lembro-me de rostos curiosos, do meximento de homens, uniformes, do agudo aflito se afastando.

Sei que morri.


***

terça-feira, 9 de junho de 2009

amor - domingos de souza nogueira neto


amor

Domingos de Souza Nogueira Neto

Gosto de dançar com você,
de ter ver flutuar,
como princesa,
única mulher!

Gosto de te ouvir,
de saborear palavras sem pressa,
atento a cada modulação,
nuvens de sentimentos...

Gosto do olhar másculo que me vem,
da certeza de que és admirada,
mas sempre minha,
certamente minha.

Gosto de te ver,
entre roupas e sapatos,
e te visto e dispo ao olhar,
enquanto se quer mais bela.

Gosto de te esperar,
certo de que vens,
de que me quer,
e te quero!

Gosto de brilhar para ti,
esquecendo-me do arredor,
do brilho dos seus olhos,
quando se admira de mim.

Sei da corrente dos sentimentos,
que me levam e trazem,
neste vaivém sem fim,
onde flutuo sem nadar.

Sei da eternidade,
sei da fugacidade do amor,
e cuido do que é,
agora.
***
FOTO: Purity
By: Amy D View Full Portfolio (215 images)
***

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Espelhos Vikings


Espelhos Vikings

Domingos de Souza Nogueira Neto


A luz de Mani que atacava a janela, esbranquiçando os gritos e os brados, registrava nos espelhos espalhados, odor purpúreo pelo qual o brilho vela. Os mortos viriam antitesar a vida, calva servida em crânios insepultos, mulheres rasgadas sorrindo, entre insultos ... por pouco mais, por pouco menos, tudo. As três nornas marcavam trilha em sina, lobos rondavam em busca de outra lida, e verbo pai de profecia sibilina, tornava em ato a maldição contida. Ao canto ao tanto o soterrado brilho, polido por mãos afetas a sortida, jogada a peça que reflete a morte e a vida, em mão de mago o mortal sarilho. Festa que a orgia esboçava, na costa eslava velava a quem morria, pois nobre aquele que no fogo arde, amor gentil é o amor de escrava. O certo é que as fogueiras junto a lua, nos espéculos, premiam em luz ao tido, e ainda hoje, no passar dos séculos, quando a völva profecia se fez rito, as almas mansas de vinda judia, revirando os espelhos d´almas nuas, não vêem marcas de qualquer perfidia.
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IMAGEM: Funeral Viking

segunda-feira, 18 de maio de 2009

minemai mymine


Homenagem ao amigo
Júlio Goa de Almeida
Da eternidade para a eternidade


minemai
mymine

Eu não posso atestar a fidelidade deste poema, que chegou a mim de forma curiosa, no início da década de 1970, um velho amigo, especializado em literatura, me apresentou texto de poema, em dialeto notúmbrio, provavelmente do Séc. XIV, e que, segundo ele, era transcrição de fragmento manuscrito, encontrado solto, em pesquisa no monastério inglês de Lacock_Abbei (v. foto).
Não tive acesso ao original, apenas a compilação apresentada, que traduzimos rapidamente, em um dos antigos bares do edifício Maleta, em Belo Horizonte, bêbados e de madrugada, mas, apaixonados pela descoberta.
O fragmento tinha peculiaridades, eram dois sonetos superpostos, usando recurso que só viria a ser valorizado no concretismo, séculos depois, e, em dois estilos literários diferentes, algo do parnasiano e algo do barroco, para descrever duas visões do poeta acerca de uma única mulher.
Pouco depois meu amigo veio a falecer no trágico incêndio do Edifício Joelma, e eu, mergulhado em depressão, não tive a grandeza procurar seus familiares (nem sei se sobreviveram, nem saberia para quem ligar...), do texto original, nenhum vestígio.
Mas, recentemente, encontrei em meus guardados, dentro de um livro, do Ulisses, de Joyce, que sempre me chama a releitura, nosso fragmento bêbado, ainda com as marcas de nossa última aventura, em tradução apressada para o português, que é o que tenho.
Muito embora neste blog tenha prometido postar apenas textos meus, tenho a esperança que nesta imensa rede de detetives virtuais, venha a ser descoberta a resposta para o que nos faltou, por pouco tempo, pouca vida e muita cerveja... Que Apolo nos devolva o que Dionísio nos negou. E afinal, talvez se trate disto, a mesma mulher, um só homem, parte Febo, parte Baco. Vejam os poemas, lendo as colunas separadamente (e lembrem-se que no texto original tudo rimava, mas já não o tenho):

minemai
mymine


Árcade pétala da flor mais delicada,
Boas lembranças do seu corpo na alcova,
Nas águas a banhar tão belos pés,
Príncipe Galeotto me traz boa lembrança,
Sorriso branco de luz da alvorada,
De quatro moças que meu o corpo amava,
Porta d´alma que mostra quem tu és.
Prudência, Justiça, Fortaleza, Temperança
***
O nome Mai, náiade de Escamandro,
A peste negra, a morte triste velha praga,
Onde Heracles plantou a prima fonte,
Onde sugaram Fé, Esperança e Caridade
Por aonde vais dá nome ao meandro,
Mantiveram-te cativa desta minha ilharga,
Que alenta a sina de Orfeu, o viajante.
Para a qual busquei-te na mais tenra idade


***
Se o meu canto pudesse encontrar-te,
Padres freiras unem preces d’outros cantos
E atraí-la para amor, Vênus e Eros,
Para deuses helenos, Razão, Ira e Luxúria,
Consagraria aos deuses minha arte.
Cobrindo os mortos com o fogo em manto.
***


Minha lira tangeria aos deuses feros,
Enquanto correm para todo lugar os tontos,
E da alegria falaria em toda a parte,
Meu bem de nós não vem qualquer lamúria
Tocando apenas o prazer de amar-te.
Corpos que mexem, pois não somos santos.

***
FOTO: Monastério de Laccok Abbey

sexta-feira, 15 de maio de 2009

a carta


a carta

Domingos de Souza Nogueira Neto


Zé, da janela do quarto, via o beco onde os vizinhos despejavam o lixo. Se tivesse sorte veria uma ratazana empanzinada fugindo dos gatos sempre rondando, ou, sendo apanhada por aqueles tigres sem título de nobreza.
O cheiro não o incomodava lá no terceiro andar onde estava, e olhar para fora, o livrava do constrangimento de olhar para dentro.
Havia em tudo certa ordem, as mesmas sacolas rasgadas, de vísceras expostas. O sofá de pouco estofo estirado ao canto. As latas de tampas entre_abertas...
Foi quando algo chamou sua atenção. Em cima da caixa de papelão, meio enviesada pelo peso dos restos de latas e garrafas, a carta. Deteve-se perturbado por aquela intrusa em sua rotina. Não havia sinal de amassados, borra de comida, rejeição. Perfeita, em envelope alvo, estava ali, uma carta, depositada, não jogada.
Ficou matutando por um tempo, aquilo estava errado, quase que uma profanação. Alguém percorrera aquele espaço, colocara ali sua correspondência e fora embora. Não – delírio! - era algo que caíra, ou a ira da rejeição a amor insistente, que voejara de uma das janelas e pousara ali.
Tranqüilizou-se instantaneamente, logo o vento a brisa do beco a sopraria, ou as mãos do lixeiro descuidado a misturariam à turba, e tudo voltaria ao normal. Foi quando ela surgiu...
Hipnotizado a contemplou a surgir no seu ângulo direito de visão, moça, ali dos seus trinta anos, cabelos penteados, rosto maquiado, saia e blusa perfeitamente combinados, sapatos e meias. Em passos seguros entrou na viela.
Queria gritar que saísse dali, aquele era o seu lugar! A carta, e agora ela, nada fazia sentido. Mas ficou mudo, gritou para dentro.
A moça entrou como se estivesse na sala, alisando a saia, sentou no velho sofá - que certamente não esperava por mais ninguém - tomou a carta entre os dedos, revirou-a cuidadosamente, para só depois lê-la, de forma casual.
Ao final, com meio sorriso, ela se levantou, tirou cuidadosamente, o casaco, deixando-o ao chão, os bricos, a camisa, o pequeno relógio, o sutiã, a saia, a calcinha, as meias, e ao final o sapato, seguindo, nua, com sua carta, para a grande rua e a cidade de que viera, onde nada fazia sentido.
Zé examinou a cena reconstituída na ruela, as roupas caídas, como tudo o mais. A dama se fora, e com ela, a carta. A ordem voltou a reinar no mundo.
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FOTO: Thanatos V. Tribute to Jacek Malczewski
By: Marek Jastrzebski View Full Portfolio (124 images)
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sexta-feira, 8 de maio de 2009

os olhos



os olhos

Domingos de Souza Nogueira Neto


Caminhando pela Avenida São João encontrei no chão um par de olhos, rasos, perdidos, cheios de mágoa. Como não vi o dono, coloquei-os no bolso e fui para casa.
Quando os saquei dos bolsos da velha calça jeans, ao chegar, estavam mareados, luzindo prazer e loucura, mirando os arredores, como felinos que preparassem o bote. Pensei, mas não tive coragem de jogá-los fora.
Mas afinal onde se guardam olhos? Na falta de resposta deixei-os em um prato sobre a mesa.
Misteriosos, ficaram ali, parados, fazendo-me pensar em janelas e mirantes.
Não me podia me afastar de pensar neles, turbulentos, profundos, mas confusos. Agudos penetréis da alma alheia, como são complexos os olhares perdidos.
Algo nos meus olhos brigava com aqueles olhos. Eles não se entendiam. E aquele sentimento do deslocado, do não lugar, começou a me tomar lenta_mente .
Dormi um sono intranquilo, em prece, para que eles - multiformes, caleidoscópios, e pórticos, da razão e desrazão - encontrassem logo a solução perdida, afinal, são olhos!
A luz da manhã, pela janela do dia sguinte, me disse o que fazer - nada como a luz para dizer aos olhos.
Fui a cozinha, e com uma colher de sopa, extraí, com cuidado, meus dois olhos, e encaixei os novos no lugar. Os antigos, que me olhavam aflitos, atirei pela janela. Alguém havia de encontrá-los e cuidar deles.





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Desenvolvimento sobre imagem in http://www.testriffic.com/


sexta-feira, 1 de maio de 2009

O Bailado


O Bailado

Domingos de Souza Nogueira Neto


Desenho fúnebre de chão feito de gosma,
Viscoso e coberto por purpúrea neblina,
Onde vulto febril prisioneiro no miasma,
Fazia passos arrastados de uma bailarina.

No solo lúgubre do mundo apodrecido,
Pântano pútrido peso limo de aldravas,
Tornando em giros os trapos do vestido,
Rota em molambos a dama vil dançava.

Por trevas ermas nenhum som se ouvia,
Mas soberba plena envolta em escuridão,
Nas sombras mortas a mulher inda sorria.

Pois preso em trevas o lépido coração,
Desprezava o ermo em mordaz ironia,
Melodiando as notas da última canção.
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FOTO: ballerina (desenvolvida pelo blog em escala de gris)
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