sexta-feira, 15 de maio de 2009

a carta


a carta

Domingos de Souza Nogueira Neto


Zé, da janela do quarto, via o beco onde os vizinhos despejavam o lixo. Se tivesse sorte veria uma ratazana empanzinada fugindo dos gatos sempre rondando, ou, sendo apanhada por aqueles tigres sem título de nobreza.
O cheiro não o incomodava lá no terceiro andar onde estava, e olhar para fora, o livrava do constrangimento de olhar para dentro.
Havia em tudo certa ordem, as mesmas sacolas rasgadas, de vísceras expostas. O sofá de pouco estofo estirado ao canto. As latas de tampas entre_abertas...
Foi quando algo chamou sua atenção. Em cima da caixa de papelão, meio enviesada pelo peso dos restos de latas e garrafas, a carta. Deteve-se perturbado por aquela intrusa em sua rotina. Não havia sinal de amassados, borra de comida, rejeição. Perfeita, em envelope alvo, estava ali, uma carta, depositada, não jogada.
Ficou matutando por um tempo, aquilo estava errado, quase que uma profanação. Alguém percorrera aquele espaço, colocara ali sua correspondência e fora embora. Não – delírio! - era algo que caíra, ou a ira da rejeição a amor insistente, que voejara de uma das janelas e pousara ali.
Tranqüilizou-se instantaneamente, logo o vento a brisa do beco a sopraria, ou as mãos do lixeiro descuidado a misturariam à turba, e tudo voltaria ao normal. Foi quando ela surgiu...
Hipnotizado a contemplou a surgir no seu ângulo direito de visão, moça, ali dos seus trinta anos, cabelos penteados, rosto maquiado, saia e blusa perfeitamente combinados, sapatos e meias. Em passos seguros entrou na viela.
Queria gritar que saísse dali, aquele era o seu lugar! A carta, e agora ela, nada fazia sentido. Mas ficou mudo, gritou para dentro.
A moça entrou como se estivesse na sala, alisando a saia, sentou no velho sofá - que certamente não esperava por mais ninguém - tomou a carta entre os dedos, revirou-a cuidadosamente, para só depois lê-la, de forma casual.
Ao final, com meio sorriso, ela se levantou, tirou cuidadosamente, o casaco, deixando-o ao chão, os bricos, a camisa, o pequeno relógio, o sutiã, a saia, a calcinha, as meias, e ao final o sapato, seguindo, nua, com sua carta, para a grande rua e a cidade de que viera, onde nada fazia sentido.
Zé examinou a cena reconstituída na ruela, as roupas caídas, como tudo o mais. A dama se fora, e com ela, a carta. A ordem voltou a reinar no mundo.
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FOTO: Thanatos V. Tribute to Jacek Malczewski
By: Marek Jastrzebski View Full Portfolio (124 images)
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