quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Brumas de Paris


Brumas de Paris

domingos de souza nogueira neto


Ali estava eu, solitário em Paris. O "Café de Flore", meu favorito, estava vazio àquela hora e a vista de Saint Germain, da varanda, me fazia alheio, naquelas brumas de inverno.

Foi quando chegou, linda, de certa forma que atemorizava, a gargantilha com pontas, piercings na boca, sombrancelhas, lábios e nariz. Os cabelos, pretos, curtos, pontilhados, realçavam o negrume da maquiagem até a boca agressiva. Gótica sem dúvida. A tatuagem da serpente - seria um dragão? - mergulhava nos seios, desafiando minha imaginação a segui-la em viagem.

A semescuridão da hora era perfeita para ela, pronta para saltar sobre algo maior que eu - esquecido. O vestido o negro bem talhado, de decote amplo e a saia curta, realçavam a perfeição do corpo onde o artista desenhara.

Parou, montou a cigarrilha sobre a piteira longa, e sorveu um trago, que expeliu em baforada compondo com a neblina do chão a fugáz imagem de um cisne. Depois olhou além, como se esperasse pela noite ainda longe.

É certo que meu olhar perdido não a incomodava, brasileiro do interior, acostumado a personagens apenas literárias, tão cativo daquela presença que poderia me destruir com um único franzir inquieto de sombrancelhas.

Foi quando apareceu nas nuvens outra personagem, loira, de cabelos fartos que desabavam em cachos claros, olhos azuis e sorriso débil, quase flutuando. Vestido azul, até os pés, calçados com saltinhos que certamente serviriam a Cinderela. E - não sei se podem comprender - uma leve brisa parecia soprar apenas para mover aquele quadro.

Certamente as crianças a adorariam, deitariam no seu colo com gemidos curtos, a girariam cantando cantigas de roda em pradarias cobertas por florinhas brancas e pediriam que lesse as histórias das quais minha infância eram repletas. Poderia ser fada, princesa e a pele era alva a ponto de escurecer a névoa da manhã.

Dirigiu-se à primeira. Parou na verdade, tão perto, que compartilhavam a neblina respirada, as brumas do dia e o bafejo da cigarriha, que agora pendia ao longo do corpo, e, após cruzarem um olhar quase eterno, tomaram-se nos braços e se beijaram, sorvendo-se, lentas, tese e antitese, nas brumas de Paris...

FOTO: Cafe De Flore
by Jeanloup Sieff em http://www.allposters.com/

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

miríades e sombras


miríades e sombras

domingos de souza nogueira neto

Entre os cobertores espremia meus olhos, a noite me ensinou a estar só. Havia sempre o que ser temido. As sombras escuras que andavam enfileiradas e transformavam minha alma em gelo. Ao longe o noturno.

Apertando as pálpebras se espalhavam os cintilos, as vezes breves e sozinhos, as vezes em filas alegres, miríades, das quais só vim a saber com o passar de auroras.

Eram assim as minhas noites. Nada sabia dos meus pais, que estavam vivos, dormia na cama dos meus avós.

Conhecia do mêdo, da incerteza, das ausências traduzidas em sombra, e das criaturas da noite, que ocupavam o espaço entre os miúdos da infância e tudo o mais que haveria de vir.

Entre uma e outra, minipsicodélicas brincadeiras de luz, alheias aos meus terrores e a onipresença das sombras, existiam, de fato, quem havia de dizer, diamonds que Lucy haveria de ver in the sky.

Não via o universo de galáxias e buracos negros, nem trevas salpicadas, meu jovem rosto pouco alcançava pelo buraco do cobertor.

Havia apenas a criança, assombrada pelo desconhecimento, pontuado por pequenas luzes, sobre o qual nada podia, esperando pela hora de acordar.