quarta-feira, 27 de maio de 2009

Espelhos Vikings


Espelhos Vikings

Domingos de Souza Nogueira Neto


A luz de Mani que atacava a janela, esbranquiçando os gritos e os brados, registrava nos espelhos espalhados, odor purpúreo pelo qual o brilho vela. Os mortos viriam antitesar a vida, calva servida em crânios insepultos, mulheres rasgadas sorrindo, entre insultos ... por pouco mais, por pouco menos, tudo. As três nornas marcavam trilha em sina, lobos rondavam em busca de outra lida, e verbo pai de profecia sibilina, tornava em ato a maldição contida. Ao canto ao tanto o soterrado brilho, polido por mãos afetas a sortida, jogada a peça que reflete a morte e a vida, em mão de mago o mortal sarilho. Festa que a orgia esboçava, na costa eslava velava a quem morria, pois nobre aquele que no fogo arde, amor gentil é o amor de escrava. O certo é que as fogueiras junto a lua, nos espéculos, premiam em luz ao tido, e ainda hoje, no passar dos séculos, quando a völva profecia se fez rito, as almas mansas de vinda judia, revirando os espelhos d´almas nuas, não vêem marcas de qualquer perfidia.
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IMAGEM: Funeral Viking

segunda-feira, 18 de maio de 2009

minemai mymine


Homenagem ao amigo
Júlio Goa de Almeida
Da eternidade para a eternidade


minemai
mymine

Eu não posso atestar a fidelidade deste poema, que chegou a mim de forma curiosa, no início da década de 1970, um velho amigo, especializado em literatura, me apresentou texto de poema, em dialeto notúmbrio, provavelmente do Séc. XIV, e que, segundo ele, era transcrição de fragmento manuscrito, encontrado solto, em pesquisa no monastério inglês de Lacock_Abbei (v. foto).
Não tive acesso ao original, apenas a compilação apresentada, que traduzimos rapidamente, em um dos antigos bares do edifício Maleta, em Belo Horizonte, bêbados e de madrugada, mas, apaixonados pela descoberta.
O fragmento tinha peculiaridades, eram dois sonetos superpostos, usando recurso que só viria a ser valorizado no concretismo, séculos depois, e, em dois estilos literários diferentes, algo do parnasiano e algo do barroco, para descrever duas visões do poeta acerca de uma única mulher.
Pouco depois meu amigo veio a falecer no trágico incêndio do Edifício Joelma, e eu, mergulhado em depressão, não tive a grandeza procurar seus familiares (nem sei se sobreviveram, nem saberia para quem ligar...), do texto original, nenhum vestígio.
Mas, recentemente, encontrei em meus guardados, dentro de um livro, do Ulisses, de Joyce, que sempre me chama a releitura, nosso fragmento bêbado, ainda com as marcas de nossa última aventura, em tradução apressada para o português, que é o que tenho.
Muito embora neste blog tenha prometido postar apenas textos meus, tenho a esperança que nesta imensa rede de detetives virtuais, venha a ser descoberta a resposta para o que nos faltou, por pouco tempo, pouca vida e muita cerveja... Que Apolo nos devolva o que Dionísio nos negou. E afinal, talvez se trate disto, a mesma mulher, um só homem, parte Febo, parte Baco. Vejam os poemas, lendo as colunas separadamente (e lembrem-se que no texto original tudo rimava, mas já não o tenho):

minemai
mymine


Árcade pétala da flor mais delicada,
Boas lembranças do seu corpo na alcova,
Nas águas a banhar tão belos pés,
Príncipe Galeotto me traz boa lembrança,
Sorriso branco de luz da alvorada,
De quatro moças que meu o corpo amava,
Porta d´alma que mostra quem tu és.
Prudência, Justiça, Fortaleza, Temperança
***
O nome Mai, náiade de Escamandro,
A peste negra, a morte triste velha praga,
Onde Heracles plantou a prima fonte,
Onde sugaram Fé, Esperança e Caridade
Por aonde vais dá nome ao meandro,
Mantiveram-te cativa desta minha ilharga,
Que alenta a sina de Orfeu, o viajante.
Para a qual busquei-te na mais tenra idade


***
Se o meu canto pudesse encontrar-te,
Padres freiras unem preces d’outros cantos
E atraí-la para amor, Vênus e Eros,
Para deuses helenos, Razão, Ira e Luxúria,
Consagraria aos deuses minha arte.
Cobrindo os mortos com o fogo em manto.
***


Minha lira tangeria aos deuses feros,
Enquanto correm para todo lugar os tontos,
E da alegria falaria em toda a parte,
Meu bem de nós não vem qualquer lamúria
Tocando apenas o prazer de amar-te.
Corpos que mexem, pois não somos santos.

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FOTO: Monastério de Laccok Abbey

sexta-feira, 15 de maio de 2009

a carta


a carta

Domingos de Souza Nogueira Neto


Zé, da janela do quarto, via o beco onde os vizinhos despejavam o lixo. Se tivesse sorte veria uma ratazana empanzinada fugindo dos gatos sempre rondando, ou, sendo apanhada por aqueles tigres sem título de nobreza.
O cheiro não o incomodava lá no terceiro andar onde estava, e olhar para fora, o livrava do constrangimento de olhar para dentro.
Havia em tudo certa ordem, as mesmas sacolas rasgadas, de vísceras expostas. O sofá de pouco estofo estirado ao canto. As latas de tampas entre_abertas...
Foi quando algo chamou sua atenção. Em cima da caixa de papelão, meio enviesada pelo peso dos restos de latas e garrafas, a carta. Deteve-se perturbado por aquela intrusa em sua rotina. Não havia sinal de amassados, borra de comida, rejeição. Perfeita, em envelope alvo, estava ali, uma carta, depositada, não jogada.
Ficou matutando por um tempo, aquilo estava errado, quase que uma profanação. Alguém percorrera aquele espaço, colocara ali sua correspondência e fora embora. Não – delírio! - era algo que caíra, ou a ira da rejeição a amor insistente, que voejara de uma das janelas e pousara ali.
Tranqüilizou-se instantaneamente, logo o vento a brisa do beco a sopraria, ou as mãos do lixeiro descuidado a misturariam à turba, e tudo voltaria ao normal. Foi quando ela surgiu...
Hipnotizado a contemplou a surgir no seu ângulo direito de visão, moça, ali dos seus trinta anos, cabelos penteados, rosto maquiado, saia e blusa perfeitamente combinados, sapatos e meias. Em passos seguros entrou na viela.
Queria gritar que saísse dali, aquele era o seu lugar! A carta, e agora ela, nada fazia sentido. Mas ficou mudo, gritou para dentro.
A moça entrou como se estivesse na sala, alisando a saia, sentou no velho sofá - que certamente não esperava por mais ninguém - tomou a carta entre os dedos, revirou-a cuidadosamente, para só depois lê-la, de forma casual.
Ao final, com meio sorriso, ela se levantou, tirou cuidadosamente, o casaco, deixando-o ao chão, os bricos, a camisa, o pequeno relógio, o sutiã, a saia, a calcinha, as meias, e ao final o sapato, seguindo, nua, com sua carta, para a grande rua e a cidade de que viera, onde nada fazia sentido.
Zé examinou a cena reconstituída na ruela, as roupas caídas, como tudo o mais. A dama se fora, e com ela, a carta. A ordem voltou a reinar no mundo.
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FOTO: Thanatos V. Tribute to Jacek Malczewski
By: Marek Jastrzebski View Full Portfolio (124 images)
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sexta-feira, 8 de maio de 2009

os olhos



os olhos

Domingos de Souza Nogueira Neto


Caminhando pela Avenida São João encontrei no chão um par de olhos, rasos, perdidos, cheios de mágoa. Como não vi o dono, coloquei-os no bolso e fui para casa.
Quando os saquei dos bolsos da velha calça jeans, ao chegar, estavam mareados, luzindo prazer e loucura, mirando os arredores, como felinos que preparassem o bote. Pensei, mas não tive coragem de jogá-los fora.
Mas afinal onde se guardam olhos? Na falta de resposta deixei-os em um prato sobre a mesa.
Misteriosos, ficaram ali, parados, fazendo-me pensar em janelas e mirantes.
Não me podia me afastar de pensar neles, turbulentos, profundos, mas confusos. Agudos penetréis da alma alheia, como são complexos os olhares perdidos.
Algo nos meus olhos brigava com aqueles olhos. Eles não se entendiam. E aquele sentimento do deslocado, do não lugar, começou a me tomar lenta_mente .
Dormi um sono intranquilo, em prece, para que eles - multiformes, caleidoscópios, e pórticos, da razão e desrazão - encontrassem logo a solução perdida, afinal, são olhos!
A luz da manhã, pela janela do dia sguinte, me disse o que fazer - nada como a luz para dizer aos olhos.
Fui a cozinha, e com uma colher de sopa, extraí, com cuidado, meus dois olhos, e encaixei os novos no lugar. Os antigos, que me olhavam aflitos, atirei pela janela. Alguém havia de encontrá-los e cuidar deles.





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Desenvolvimento sobre imagem in http://www.testriffic.com/


sexta-feira, 1 de maio de 2009

O Bailado


O Bailado

Domingos de Souza Nogueira Neto


Desenho fúnebre de chão feito de gosma,
Viscoso e coberto por purpúrea neblina,
Onde vulto febril prisioneiro no miasma,
Fazia passos arrastados de uma bailarina.

No solo lúgubre do mundo apodrecido,
Pântano pútrido peso limo de aldravas,
Tornando em giros os trapos do vestido,
Rota em molambos a dama vil dançava.

Por trevas ermas nenhum som se ouvia,
Mas soberba plena envolta em escuridão,
Nas sombras mortas a mulher inda sorria.

Pois preso em trevas o lépido coração,
Desprezava o ermo em mordaz ironia,
Melodiando as notas da última canção.
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FOTO: ballerina (desenvolvida pelo blog em escala de gris)
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