terça-feira, 2 de março de 2010

a casa das águas


a casa das águas



domingos de souza nogueira neto



Não era solo sagrado, terra profanada, e nem aquelas águas mirradas, eram lágrimas da velha escrava que vira seu filho morrer em tormentos.


Apenas uma bica de bambu, rudimentar, onde, antes do milagre dos encanamentos, lavadeiras esfregavam seus panos, e carregavam bilhas na cabeça. A terra esponjosa bebia aqueles poucos goles, onde se juntavam matinhos sem eira nem beira.


Assim, quando aterrei aquela nascente pobre, não ignorei a história, não cometi pecados e nem provoquei qualquer desequilíbrio no tece e destece das coisas da natureza.


Ali construiria a minha casa. Não seria um canto qualquer, pedra encaixada sobre pedra, frestas justas, como só Mestre Ferreira sabia assentar, pé direito alto, para mais de cinco metros, vigas de pedreado cru. O chão, a pedido, foi feito concreto grosso, ilustrado por cimento queimado com notas de marfim.


A mobília de alvenaria rústica, a iluminação com luminárias e acentos dicróicos procurava emprestar tonalidades diáfanas ao conjunto colonial, que podia ser totalmente aceso pelos janelões em todo o volteado.


O muro de arrimo aos fundos da morada, conjunto poderoso na escora do barranco, era também a parede dos fundos, inclinada em acento agudo, que para cada cômodo teria uma serventia.


Não houve mágica, tudo, aliás, pensando hoje, parece bastante previsível. Primeiro uma gota rolando tímida no encosto da sala, depois um fio e a poça no chão impermeável. Mestre Teixeira coçou a cabeça, ali estava o gotejo da bica, que sem terra para chupá-lo, corria tranqüilo na pedra nivelada.


A impermeabilização estava fora de questão, comprometeria a beleza da parede dos fundos, a pedra podia ser quebrada ao pé do lageado, para que a água pudesse mergulhar por seu caminho habitual, talvez um pequeno jardim.


Mas, enfim, optamos por fazer ao redor dos comodos uma larga canaleta impermeável, que conduziria a água caprichosa pelos entornos do interior da casa com desague final no ralo de malhas finas do banheiro.


O problema dos mosquitos seria resolvido por uns poucos peixes, que certamente aprovariam a beleza e liberdade do ambiente.


Minha esposa (uma linda huri libanesa de nome Hálima), começou a transformação. Apareceu um dia com orquídeas, compradas em uma exposição, e colocou-as com preguinhos e arames na beira do fio de água que escorria da parede.


As orquídeas se espalharam, ganharam o pedrume, se juntaram a outras, que vinham de toda a parte pela mão de amigos, teceram no reclive um delicado entremeado de flores, pedra e folhas. Todos os dias, em uma das frestas de pedras duras, um meristema despontava curioso.


Meu filho, o Príncipe Pedro Daher de Casad'águas, não podia ver peixes de aquário e plantinhas aquáticas, sem libertá-los no remanso criado, que ganhava em colorido e pluralidade a cada novo dia.

Guppies, Neons, Espadinhas, Platis, Molinésias, Tricogasters, Colisas, Acarás, Paulistinhas, Barbos, Japoneses, Tetras e Mato-Grossos, com seus véus e suas liras, variedades intermináveis de espécies e matizes, juntavam-se a toda uma fauna de molúsculos e crustáceos de água doce, "sei lá de onde", que eventualmente escondiam-se nas folhagens das orquídeas a beira do riacho.


Orquídeas e plantas d'água se beijam hoje em toque delicado, e me deixam perdido, porque tudo começou onde não havia mágica, história, natureza, e então, de uma lágrima, tudo se fez.


Ah, e tem o Ian - nosso bebê - gritando encantado.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

livre


livre


domingos de souza nogueira neto



nua no solo gotejando sangue,
coberta por galhos e por brisa,
os cabelos atados em treliças,
o salgado dos seios qual o mangue.


o charme da morte no entorno,
nada tão belo como já não ter vida,
o voejar da alma livre de estorvo,
pérolas rubras na rosa entreabrida.


olhos azuis de costas para as estrelas,
lábios abismos pálidos entre sustos,
no solo a beleza (bruços feito em telas).


e o estilete equilibrado em meus dedos,
purpureo ao refletir o alvor da lua,
celebrava a queda nua de seus medos.

melhor perder-te que deixar-te tua.



terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

paradoxo


paradoxo



domingos de souza nogueira neto



Minhas caminhadas são perderes, ando longe de onde vou, quase nada vejo, tomo e retomo lugares antes de chegar. Naquela tarde o tumulto me fez voltar a mim.

Em pé, o mendigo, suarento, barbudo, cabeludo, ensebado, exalava o cheiro quase insuportável de suor, feses, urina e comida apodrecida. Se debatia.


Em torno dele o policial, desferia chutes e murros, e um civil, destes comuns espancava solidariamente o pobre. Tentavam, sem sucesso, derrubá-lo.


No chão, sentada rente a parede, uma criança linda, loira de olhos azuis e vestida a molde dos anjos, chorava inconsolável.


Eu mesmo, de cabelos amarrados em rabo, terno roto e com outro Eu (de Augusto dos Anjos) na mão, não contribuia para a beleza do cenário.


Parei transido de medo, não se enganem, temia ser covarde ainda desta vez, mas decidi tentar. - Secretaria de Direitos Humanos! gritei. - Parem com isto!

A mentira sempre me acompanha quando estou com medo, e a idéia dos direitos humanos veio assim, atoa.


Olhando firme para o policial fui categórico: - Largue este homem ou o prenda, mas voce não pode bater nele!


Quase que em slow motion a cena se desfez. O mendigo foi embora, esbravejando para as dores, estas e aquelas, que não pude ver.


O policial, livre do mau cheiro e da perspectiva de encarceirar a sub humanidade dos lumpens, junto a maldade insurgente (mas preservada em sua estética), procurava entre os lojistas pia com água e sabão.


O paisano, assistente de algóz, aproximou-se da criança e tomou-a ao colo, consolando-a com doçura. Depois, olhando-me nos olhos, apenas disse: - aquela coisa imunda chutou o meu neném!


O paradoxo me deixou confuso, e meu sentimento de herói me abandonou sózinho, com "Eu" nas mãos, apenas fui embora.


A dor do pai, do mendigo e do poeta augusto. O alívio do policial e meu momento incerto. As lágrimas da criança que nada entendia. O que fizemos do colo do mundo?

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

neverend - domingos de souza nogueira neto


neverend

domingos de souza nogueira neto

Não sei como iniciou a queda. Lembro-me apenas das paredes acelerando ao lado, vertiginosas. Distinguia as cores no início. Imagens, sombras, saliências, tufos? Verdes e castanhos acelerando, zumbidos...

Tudo se misturava depois. As cores em cinza, imagens em planos, paredes em lados e zunidos em ventania.

Preparei-me para o impacto. O estalido oco de ossos partidos. Para a dor de segundos, talvez menos. E depois?

Só o contínuo. As luzes se foram, o vento parecia riscos rápidos de gilete, o breu, o cilindro negro ao redor, e a angustia da queda no escuro dos pesadelos de criança. Talvez tivesse enlouquecido e rostos me olhassem atônitos.

No fim, nada, e nem fim. Já não havia vento, o arredor cintilava em branco, já não sentia a queda, apenas um ponto que então se apagou.

Então, o vazio, ou pleno, talvez, e como ínfimo yo-yo cósmico senti a hora de voltar às sombras, de acelerar de volta, rumo ao ponto, sem mais saber...