Brumas de Paris
domingos de souza nogueira neto
Ali estava eu, solitário em Paris. O "Café de Flore", meu favorito, estava vazio àquela hora e a vista de Saint Germain, da varanda, me fazia alheio, naquelas brumas de inverno.
Foi quando chegou, linda, de certa forma que atemorizava, a gargantilha com pontas, piercings na boca, sombrancelhas, lábios e nariz. Os cabelos, pretos, curtos, pontilhados, realçavam o negrume da maquiagem até a boca agressiva. Gótica sem dúvida. A tatuagem da serpente - seria um dragão? - mergulhava nos seios, desafiando minha imaginação a segui-la em viagem.
A semescuridão da hora era perfeita para ela, pronta para saltar sobre algo maior que eu - esquecido. O vestido o negro bem talhado, de decote amplo e a saia curta, realçavam a perfeição do corpo onde o artista desenhara.
Parou, montou a cigarrilha sobre a piteira longa, e sorveu um trago, que expeliu em baforada compondo com a neblina do chão a fugáz imagem de um cisne. Depois olhou além, como se esperasse pela noite ainda longe.
É certo que meu olhar perdido não a incomodava, brasileiro do interior, acostumado a personagens apenas literárias, tão cativo daquela presença que poderia me destruir com um único franzir inquieto de sombrancelhas.
Foi quando apareceu nas nuvens outra personagem, loira, de cabelos fartos que desabavam em cachos claros, olhos azuis e sorriso débil, quase flutuando. Vestido azul, até os pés, calçados com saltinhos que certamente serviriam a Cinderela. E - não sei se podem comprender - uma leve brisa parecia soprar apenas para mover aquele quadro.
Certamente as crianças a adorariam, deitariam no seu colo com gemidos curtos, a girariam cantando cantigas de roda em pradarias cobertas por florinhas brancas e pediriam que lesse as histórias das quais minha infância eram repletas. Poderia ser fada, princesa e a pele era alva a ponto de escurecer a névoa da manhã.
Dirigiu-se à primeira. Parou na verdade, tão perto, que compartilhavam a neblina respirada, as brumas do dia e o bafejo da cigarriha, que agora pendia ao longo do corpo, e, após cruzarem um olhar quase eterno, tomaram-se nos braços e se beijaram, sorvendo-se, lentas, tese e antitese, nas brumas de Paris...