quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

livre


livre


domingos de souza nogueira neto



nua no solo gotejando sangue,
coberta por galhos e por brisa,
os cabelos atados em treliças,
o salgado dos seios qual o mangue.


o charme da morte no entorno,
nada tão belo como já não ter vida,
o voejar da alma livre de estorvo,
pérolas rubras na rosa entreabrida.


olhos azuis de costas para as estrelas,
lábios abismos pálidos entre sustos,
no solo a beleza (bruços feito em telas).


e o estilete equilibrado em meus dedos,
purpureo ao refletir o alvor da lua,
celebrava a queda nua de seus medos.

melhor perder-te que deixar-te tua.



terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

paradoxo


paradoxo



domingos de souza nogueira neto



Minhas caminhadas são perderes, ando longe de onde vou, quase nada vejo, tomo e retomo lugares antes de chegar. Naquela tarde o tumulto me fez voltar a mim.

Em pé, o mendigo, suarento, barbudo, cabeludo, ensebado, exalava o cheiro quase insuportável de suor, feses, urina e comida apodrecida. Se debatia.


Em torno dele o policial, desferia chutes e murros, e um civil, destes comuns espancava solidariamente o pobre. Tentavam, sem sucesso, derrubá-lo.


No chão, sentada rente a parede, uma criança linda, loira de olhos azuis e vestida a molde dos anjos, chorava inconsolável.


Eu mesmo, de cabelos amarrados em rabo, terno roto e com outro Eu (de Augusto dos Anjos) na mão, não contribuia para a beleza do cenário.


Parei transido de medo, não se enganem, temia ser covarde ainda desta vez, mas decidi tentar. - Secretaria de Direitos Humanos! gritei. - Parem com isto!

A mentira sempre me acompanha quando estou com medo, e a idéia dos direitos humanos veio assim, atoa.


Olhando firme para o policial fui categórico: - Largue este homem ou o prenda, mas voce não pode bater nele!


Quase que em slow motion a cena se desfez. O mendigo foi embora, esbravejando para as dores, estas e aquelas, que não pude ver.


O policial, livre do mau cheiro e da perspectiva de encarceirar a sub humanidade dos lumpens, junto a maldade insurgente (mas preservada em sua estética), procurava entre os lojistas pia com água e sabão.


O paisano, assistente de algóz, aproximou-se da criança e tomou-a ao colo, consolando-a com doçura. Depois, olhando-me nos olhos, apenas disse: - aquela coisa imunda chutou o meu neném!


O paradoxo me deixou confuso, e meu sentimento de herói me abandonou sózinho, com "Eu" nas mãos, apenas fui embora.


A dor do pai, do mendigo e do poeta augusto. O alívio do policial e meu momento incerto. As lágrimas da criança que nada entendia. O que fizemos do colo do mundo?